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Cap 118 - A procura

O portão da escola está fechado, mas Nina sabe como abri-lo. Os gêmeos, Bruno e Danilo, ensinaram a ela como fazer isso no portão do sítio, pois vivem fugindo para brincar com o vizinho.
Ela faz do jeito que eles ensinaram: Subir na grade, puxar o trinco e empurrar com força. Tenta duas, três, quatro vezes, mas escorrega em todas elas. Seu tênis está encharcado e seus olhos mal enxergam na chuva. É apenas na quinta tentativa que sente o trinco se mover e o portão abrir. A menina escorrega uma última vez e cai no chão em um baque surdo. Se ergue esfregando o traseiro dolorido e se põe a correr.
Enquanto corre, sente o coração bater na garganta. Está fazendo algo muito, muito feio. Nunca foi tão desobediente antes e isso deixaria a professora muito brava. Seus pais também ficariam chateados, e seus avós e todo mundo.
“Aqui não pode passar” Um homem barbudo grita e acena para os carros. “A ponte está alagada, é muito perigoso.”
Ela já havia passado por ali muitas vezes para chegar à escola. Sabe que é por aquele caminho que deve seguir. E, apesar dos avisos do homem, ela corre como um foguete no meio da chuva pesada com o uniforme colado no corpo e o tênis ficando pesado de água.
Quando está no meio da ponte, ela olha para os lados e vê a água do rio subindo. Tudo que é tipo de coisa está boiando no caldo amarelo. São pneus, madeiras, garrafas e potes, e tudo parece chamá-la, como um ímã assustador. Não consegue ter forças para correr, principalmente pela força com que a água cai sobre seu corpo miúdo, desequilibrando seus movimentos. Quase não consegue respirar, suas roupas se balançam no corpo, seu cabelo voa e a chuva chicoteia suas costas. Está se afogando na tempestade. Olha para os lados. As placas e outdoors estão sacolejando e fazendo barulho. Um grande trovão soa alto e a estremece. Os raios cortam o céu de ponta a ponta, como raízes prateadas.
“Mamãe!” Ela olha para os lados. “Papai!”
Sente, de repente, um medo tão grande que seu coração, ainda muito pequeno para caber muitos medos, se aperta até o tamanho de uma noz. Não há como sair dali e os pais não aparecem para salvá-la. Eles sempre apareciam...
É quando uma mão pesada segura seu braço.
“O que está fazendo?” É o homem que gritava para os carros. “Sai daqui, é perigoso!”
Sem conseguir responder, com tantos sustos à sua volta, Nina apenas olha para ele, paralisada. O homem enorme, com uma barba negra e espessa, se irrita e a pega no colo, correndo para longe dali.
Nina se segura e fecha os olhos. Apenas os abre quando sente a chuva parar de bater em suas costas. O homem havia entrado em uma oficina de carros e a estava colocando no chão.
“Cadê seus pais?” Ele a segura firme pelos ombros magrinhos. “Hein? Você não fala?”
Nina olha para o rosto enorme e bravo, mas não consegue dizer nenhuma palavra. Seu queixo bate de frio e a garganta está travada.
“Você estava com eles? O que aconteceu? Abre o bico, menina!”
Ela apenas consegue balançar a cabeça em negativa antes de abraçar os próprios braços e começar a chorar.
“Quem é essa menininha?” Uma senhora idosa chega com um olhar assustado e terno. Tem cabelos brancos e usa um macacão de oficina, assim como o homem que havia carregado Nina até ali.
“Achei na chuva.”
“Quê? Está louco, Lúcio?” A mulher estala a língua no céu da boca e se ajoelha em frente à Nina. “A gente acha é objeto, não criança. Ah, mas ela é tão bonitinha. E tá com o uniforme da escola aqui do lado. Você fugiu, meu bem?”
Nina balança a cabeça, confessando. Não havia muito mais a fazer.
“Ah, não chore, vai ficar tudo bem. Meu filho é assim grandão e feio, mas não faz mal a ninguém, muito menos a uma criança tão linda.”
“Ela tá de uniforme! Daqui a pouco vão dizer que sequestramos ela na porta da escola.”
“Deixa de bobagem, trabalhei naquela escolinha por muitos anos. Vou ligar pra lá. Eles devem estar muito preocupados... Enquanto isso arruma uma toalha pra enxugar essa criança ou ela vai acabar ficando doente.”
Com uma cara de rabugento, o homem vai até um cômodo e volta rapidamente com uma enorme toalha vermelha. Embrulha Nina nela como um cobertor.
“Senta e fica quietinha aí.” Aponta para a poltrona velha atrás dela. “Não dê um pio e não toque em nada, ouviu?”
Nina se senta ainda tremendo e olha para fora. Os portões abertos da oficina mostram a chuva caindo muito pesada. Pode ser a oportunidade perfeita para escapar.
No entanto, a senhora que estava vestida com o macacão sujo de graxa, retorna com um copo de leite com chocolate e canela. Nina estava olhando para fora quando foi surpreendida pelo sorriso dela.
“Tome e sossegue. Eu já volto.”
Com as mãozinhas trêmulas e arroxeadas de frio, Nina segura a caneca que é quase do tamanho de seu rosto. Não é nenhum esforço beber a delícia que desliza por seu corpo como um banho quente. Quase sente que poderia dormir ali mesmo depois que o calor toma sua barriga e se estende até os dedinhos dos pés. Quando termina de beber, a menina coloca a caneca sobre uma mesinha e se aventura pela oficina aparentemente deserta. É tudo tão interessante! Acha algumas porcas pelo chão, alicates e muita graxa. Toca em uma das manchas escuras do chão e passa muito tempo depois tentando arrancá-la do dedo.
“Ué, funcionária nova?” Um garoto franzino pula de cima de um caminhão, dando um tremendo susto nela. “Que tá aprontando?”
Nina olha para o rosto simpático à sua frente e a expressão dele a acalma. Não é como o homem de barba espessa, mas se parece com ele, ainda que não tenha cara de mau.
“Já está assustando a menina?” A senhora chega.
“Não fiz por maldade, vó.” O garoto sorri de orelha a orelha. “Mas, olha só, a pestinha parece assustada até sem ajuda.”
A senhora ignora o neto e segue até Nina.
“Vamos conversar agora, meu bem.” Quando a senhora segura a mão dela e a leva para dentro, a menina sente-se ainda mais insegura. Olha para todos os lados, captando cada detalhe do cômodo. A sala em que entra é pequena, com móveis cobertos por toalhinhas coloridas feitas em crochê. Há dois sofás pequenos e uma tevê de tubo em um canto, em cima de um banquinho de madeira, além de muitos quadros e prateleiras com objetos variados, entre eles troféus, lembrancinhas de festas e garrafas de bebida vazias.
“Meu nome é Carmem e o seu é Nina, não é?” A senhora se senta no sofá e coloca a menina à sua frente. “O que você queria correndo debaixo dessa chuva, criança? Não imagina quantas coisas horríveis poderiam ter acontecido!”
Nina olha para ela como se fosse um cãozinho chorão. Não sabe realmente o que poderia acontecer.
“Eu liguei pra sua escola e estavam muito preocupados com você.”
“E a mamãe?” Ela se arrisca a falar pela primeira vez e a senhora dá um sorriso amistoso.
“Eles não me disseram nada sobre a sua mãe. Mas, tenha calma, logo vamos saber o que aconteceu.”
Nina olha para os lados e vasculha o lugar, achando-o muito triste.
“Por que não tem árvore de natal aqui? É quase natal.”
Dona Carmem não responde. Apenas dá de ombros e devolve a pergunta.
“Você tem uma árvore na sua casa, meu bem?”
“Uhum...” Nina recorda com alegria da árvore que montou com a mãe. 
"Com quem você mora?”
“Com minha mãe e meu pai, e meu cachorrinho. Ele fica comendo os enfeites do pinheirinho.”
“Verdade? Que cãozinho arteiro.”
“Sim!” Nina ri. “O papai fez biscoitos de coração, de árvore e de bonequinhos pra mamãe e pra mim. A gente comeu um montão depois que montou a árvore.”
“Seu pai deu o coração dele pra vocês.”
“Não! Era de biscoito.” Ela ri.
“Quando cozinhamos pra alguém, nós damos nosso amor, ou seja, nosso coração. Eu cozinhei por muitos anos na sua escolinha. Saí quando meu marido adoeceu.”
“E cadê ele?”
“Ali.” A mulher aponta para o quarto ao lado. “Quer conhecê-lo?”
A menina olha para ela e, por um instante, se esquece da fuga. É como se nada tivesse acontecido. Tudo que sente agora é uma tremenda curiosidade ao mirar aquela porta escura ao lado.
“Eu quero!” 

***

Diego acorda e se sente ainda mais tonto do que a última vez. Sua primeira preocupação é saber quanto tempo dormiu. Pode ter sido uma hora ou até uma noite inteira. E nesse tempo quantas coisas podem ter acontecido...
"Vejo que está mais calmo. Você ficou algumas horas dormindo e eu sei que tem perguntas, mas ainda não temos informações." A enfermeira retorna para verificar como ele está e atrás dele aparece o rosto tenso de Leonardo.
"Pai?"
Leonardo se aproxima e se senta na cadeira ao lado da cama em que Diego está deitado e coloca a mão sobre o braço dele.
"Que bom que está bem. Como se sente?"
"Como me sinto? Dopado! Não sei o que está acontecendo! E ninguém me diz nada sobre a Roberta!"
Diego nota que o rosto do pai fica mais tenso e percebe que ele sabe de algo e não quer lhe contar.
"Diz a verdade, o que está acontecendo com ela?!" Diego sequer percebe que está quase gritando.
"Ela se machucou bastante. Está em cirurgia... Vamos esperar que ela acorde e bem."
"Como? Que cirurgia? Há quanto tempo? Ela pode não acordar?"
Apenas o fato de pronunciar a frase, faz com que ele sinta uma dor insuportável. Seu peito se torna uma rocha e é difícil respirar, pensar ou falar. Sente raiva, uma vontade imensa de se levantar e ir atrás do homem que provocou esse acidente. Estavam rindo, lembra-se bem de conversar com Roberta sobre o passeio que fariam com Nina a tarde e do entusiasmo que ela demonstrava. Estava iluminada de um jeito completamente diferente. Era como se esperasse que algo fosse mesmo acontecer. Estava lhe dando o seu melhor sorriso, sua melhor companhia... E depois do olhar dela não se recorda de nada. É sua última lembrança. Aquele olhar...
"Eu estou garantindo que ela tenha o melhor tratamento, isso eu posso jurar, filho." Leonardo respira fundo. "A Sílvia está voltando às pressas de viagem com os meninos... A Eva e o Franco também..."
"E a Nina? Quem está com ela?"
"Ela vai ficar algumas horas a mais no colégio e vou pedir alguém para buscá-la. Acho que a melhor pessoa para cuidar dela agora é a Dani. Eu gostaria de ir, mas não posso sair do hospital, alguém tem que estar aqui..."
"Pra que? O que pensa que vai acontecer?"
"Vamos esperar..."
"Ela não vai morrer, ela não pode morrer!"

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