Cap 107 - “Tintim”

Eles escolheram morar onde as imagens se desfazem, onde o tempo existe como parte de uma conspiração cruel. Escolheram a mortalidade e a fase fechada e impenetrável aonde o fim chega sem bater à porta. Escolheram aceitar a vida e se deliciar com os minúsculos detalhes que só aparecem a quem tem coragem e paciência de olhar por alguns segundos a mais. O dia a dia é a única forma autêntica de felicidade.

***

Diego escolheu uma noite de sábado para levar Roberta para jantar. Foi um pouco difícil convencê-la a deixar Alice levar Nina para sua casa um pouco mais cedo, tendo em vista que a capacidade que a patricinha teve de demostrar ser digna de confiança não foi relativamente grande.

-Deixa disso, Roberta! Ela vai ficar ótima! –E deu a mão a Nina, virando as costas para ir embora. –Vamos brincar, tomar sorvete, pintar as unhas...

-Ô Alice!

-Ih, que foi Roberta?

-Não é só dizer tchau, sabia? Você vai precisar de fraldas, mamadeiras, roupas, produtos de higiene e não vai esquecer o Xodó!

-Que Xodó?

-Esse! –Roberta catou um ursinho detonado que estava em cima do sofá. Alice o encarou com absoluto nojo, mas Nina pulou na hora e o agarrou.

-Que troço horrível! Não leva isso, princesa! Eu compro outro pra você!

-Rá! –Roberta cruza os braços enquanto Nina olha assustada para a madrinha. –Desafio você a fazê-la dormir sem ele.

-Parem vocês duas. –Diego desce as escadas e entrega uma enorme bolsa a Alice. –Eu arrumei tudo. Aqui tem o que ela vai precisar, além de uma mamadeira que você deve deixar na geladeira quando chegar e aquecer em banho-maria antes de dar a ela à noite, Alice. Ela tem o apetite da Roberta então é bom você dar algo além de sorvete.

-Um hambúrguer? –Alice franziu o nariz, pensativa, enquanto Roberta se virava para Diego com os olhos arregalados de desespero.

-Eu vou ligar pra Dani e perguntar a ela se pode fazer o jantar também. –Diego a consola. –Não se preocupe, vai dar tudo certo.

-Alice... –Roberta fecha os olhos contendo o nervosismo. –Me promete, por tudo que você mais ama, que não vai fazer besteira!

-É claro que eu não! –A garota fica indignada. –Você sabe que eu amo a Nina e...

-Eu sei! Só me promete que vai ser responsável! Os nossos celulares vão ficar ligados. E se não souber de alguma coisa e não puder ligar, peça ajuda a Dani!

-Tá, tá, eu prometo! Nossa! Você faz parecer que é uma missão impossível! –Alice fica toda empertigada. –São só algumas horas. Vai ser moleza!

Na hora da despedida, Diego levanta a filha e a sacode no ar dando um grande beijo em sua bochecha.

-Tchau meu anjo! Obedece a madrinha, tá?

-Tá. –Nina fica séria ao ser colocada no chão, tomando consciência de que iria sair sem os pais.

Roberta se ajoelha à sua frente e a rodeia com os braços. Elas se encaram um segundo até que Roberta junta os olhos fazendo boca de peixe, arrancando um risinho de Nina.

-Escuta, minha linda, você vai pra casa da madrinha agora, ok? –Diz afastando uma mexa de cabelo da testa dela. –Vocês duas vão se divertir muito, muito! A tia Dani vai estar lá também! Eu sei que você gosta muito dela. A mamãe e o papai vão te buscar quando você acordar amanhã, tá bom? Igual quando você dormiu na casa do vovô Franco. Você lembra como foi divertido? Então... vai ser legal, não vai?

Ela faz que sim com a cabeça, já feliz outra vez.

-Agora me dá um beijinho! –Nina se inclina abraçando o pescoço da mãe e dando um estalinho em sua bochecha, ao que Roberta retribui com um abraço apertado e vários outros beijos. –Hmmmm... Tchau meu amorzinho! – Diz passando a filha para Alice. –Joga as fraldinhas sujas do closet da madrinha, tá?

-Roberta! –Alice se enraivece.

-Brincadeira. –Ela levanta as mãos. –Aqui... Se ela não quiser dormir na sua casa você me liga!

-Claro que ela vai querer!

Alice pega a afilhada e a bolsa com incredulidade. Parece uma grande bobagem levar tanta coisa para uma menininha daquele tamanho, mas se não levasse teria uma nova onda de broncas de Roberta, de modo que prefere pegar.

Roberta tenta não aparentar preocupação ao acenar para Nina do portão enquanto o carro vai embora, mas assim que vira a esquina ela se volta para Diego ao seu lado.

-Ela é doida! Eu não vou conseguir ficar tranquila! Isso não vai dar certo!

-Claro que vai! Já disse que a Dani vai ajudar, não vai acontecer nada. Aliás, a Nina é inteligente, não vai se machucar. No máximo vai fazer muita bagunça e enlouquecer a Alice!... Como eu espero que faça. –Acrescenta com ar maldoso.

Roberta para um instante.

-Não pensei por esse lado.

-Você precisa relaxar. –Ele a abraça e Roberta passa os braços por trás do seu pescoço. –Essa noite não quero que se preocupe. Quero apenas que relaxe e me deixe no controle.

-Hmm... Gostei... Mas você ainda não disse aonde vamos.

-A um lugar muito elegante, mas bem íntimo também. Acho que não posso revelar muito, se não vai perder a graça.

Eles voltam para dentro de casa e enquanto Roberta faz uma bagunça escolhendo uma roupa, Diego toma banho. Eles se desencontram nesse processo, de modo que ele fica pronto rapidamente e desce para a sala para fazer algumas ligações. Seus trajes e toda sua postura estão impecáveis. Terno elegante e sem gravata. O cabelo alinhado e a barba aparada. Parece bem mais velho e mais seguro. Não reconhece mais o que foi e o que fazia, não deixa de pensar que os anos que se passaram parecem ter ocorrido há séculos. Quanta coisa. Quão difíceis foram alguns dias. E quanto se sente mais forte e mais capaz graças a eles.  

O que parece ser uma hora mais tarde, Roberta aparece no topo da escada. Diego se levanta deixando o celular cair no sofá com um baque mudo e vai em direção ao pé da escada. A mulher que vem em sua direção está com os cabelos presos no alto, propositalmente desalinhados e com algumas mexas soltas. Diminutas contas são percebidas à luz das lâmpadas. O vestido, cor vinho, não possui alças e desce justo no busto e cintura, se abrindo apenas nos quadris de forma elegante e leve até atingir os tornozelos. Roberta parece iluminada ao descer ao seu encontro. O batom levemente brilhante contrasta com os olhos marcados e o enorme sorriso que traz consigo. Quando fica a poucos centímetros de Diego, seu perfume o entontece.

-O que foi? –Ela questiona com estranheza.

Mas Diego parece assustado que ela mesma não saiba.

-Bom, é que às vezes eu me pergunto –E estende as mãos para ajuda-la a descer deixando um sorriso fascinado fluir – se você tem noção do quanto é fantástica.

-Eu tenho noção é de quando você é fantástico.

Eles se detêm um pouco em um beijo até que Diego se lembra.

-Ah, melhor irmos, a limusine já chegou.

-Hein? –Ela não crê. –Nós vamos de limusine?

-É. Cortesia da sogra!

-Não. Sério que minha mãe mandou uma LIMUSINE pra gente?

-É. –Ele responde com simplicidade. –Para que eu leve a minha dama a para uma noite inesquecível.

Roberta mal acredita, mas atravessa o jardim de casa contemplando o céu como se o visse pela primeira vez. As estrelas que se deixam ver apesar da iluminação da cidade são com uma homenagem àquela noite. E tenta agradecê-las em silêncio em seu coração enquanto caminha sentindo o vento fresco da noite em sua pele e a mão de Diego em suas costas.

Ao chegar ao estupendo automóvel negro parado à porta de casa, o motorista abre a porta e Diego, como um perfeito cavalheiro, ajuda Roberta a entrar em sua frente.

No interior ele pega uma garrafa de champanhe e Roberta fica preocupada.

-Você vai beber? –Sua mente volta ao passado por uns instantes.

-Não se preocupe. Quero apenas fazer um brinde. –Diego enche duas taças e entrega uma a ela.

-Bem... E a que estamos brindando?

-Ao dia em que nos conhecemos.

-Acho que nunca contamos isso, não é? –Roberta franze o cenho.

-Não... Nossa história foi pega do ponto mais crítico. –Ele ergue a taça. –Quer refrescar minha memória?

Roberta deixa o cristal de sua taça bater suavemente na dele.

“Tintim”

-Acho que tudo começou com um chinelo.